Crónica de Jorge C Ferreira | Isla Negra

Jorge C Ferreira

 

Isla Negra

por Jorge C Ferreira

 

Isla Negra, sentei-me junto da tua campa e de Matilde Urrutia, ali sepultados lado a lado a olhar para o Pacífico. Nos meus olhos foram crescendo pérolas da cor daquele mar que te trazia as coisas que amavas e cuidavas. Devemos sempre cuidar e preservar aquilo que o mais puro azul nos oferece. Só assim os poemas crescem dentro de nós numa metamorfose que não sabemos explicar.

Não sei quanto tempo estive ali sentado, os olhos perdidos no infinito. Foi a conversa que nunca consegui ter contigo. Conversar com Pablo Neruda, meu sonho maior. Apenas tive essa conversa através de um amigo meu que contava e acrescentava, transformando em sonhos as realidades mais duras. Tudo isto enquanto a Isabel vagueava por aquele espaço único e inesquecível interessando-se pela criatividade do Poeta. Ao fim do dia, conversando em tom ameno, íamos juntando tudo, os dois ficávamos mais ricos.

De tudo fazias poemas, tudo o que saía das tuas mãos sabia a coisa de amar, coisas de sonhar. Desde que escreveste “Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada” que não mais paraste. Eras um miúdo e a tua obra é de uma maturidade única.

Mas voltemos à minha conversa contigo. Foi uma conversa calada. A imaginação a trabalhar. Já tinha experiência destas coisas. Muitas vezes ia falar com os meus ao local onde estão depositados. Tive com o meu Pai as conversas que nunca tinha tido com ele. Com a minha Avó foi sempre a continuação de uma conversa nunca interrompida. Era tão sábia que nunca nada para ela era impossível. Tudo aceitava e dizia, por vezes, do alto da tua sabedoria, o que eu precisava de ouvir. Sempre acompanhou o avanço do mundo e aceitou a modernidade. Era única. Agora, quando procuro os seus conselhos imagino o que me diria e sei que aceitaria, embora com a sua assertiva palavra, o que lhe confessava. É a minha deusa. Uma luz que vi apagar-se e passar para um outro lado que desconheço.

Está sempre na minha presença, como estão as “Vinte Cantigas de Amor e Uma Canção Desesperada”. Duas companhias de que nunca me separo.

Há lugares a que, de tão remotos, nunca esperamos ir, mas, por vezes, as voltas da vida levam-nos lá. Parece que há algo que forja o nosso caminho. Algo que nos satisfaz os sonhos.

A nossa vontade de ir, de estar, de ser, é, no entanto, o mais importante. Quantas vezes perdemos oportunidades por inércia ou falta de coragem?

Somos uma vontade em movimento. Somos a vontade do que queremos ser. Muitas vezes as, chamadas obrigações, não nos deixam arriscar e, quando despertamos já é demasiado tarde.

Ter alguém com quem falar sobre isto é uma dádiva que não podemos desperdiçar. É assim que, muitas vezes, se encontram soluções que julgámos impossíveis.

Equações que vamos aprendendo a resolver, caminhos que aprendemos a percorrer.

Não ter medo que saibam o que pensamos, que vejam os nossos sentimentos despidos, que nos vejam chorar. Nunca ceder para obter algo com mais facilidade. Não se esqueçam que, mais tarde ou mais cedo, vos irão pedir algo de volta. Nunca dobrar a cerviz.

“Hoje estás muito pensativo. Dizes muito que é importante e sei que é verdade. Assim gosto de ti.»

Fala de Isaurinda.

«Obrigado, também eu gosto de ti e tu sabes. Conhecemo-nos bem. Sabemos muito um do outro.»

Respondo.

«Não te ponhas com essas coisas que me comovem.»

De novo Isaurinda e vai, lágrimas a querem soltar-se da vida.

Jorge C Ferreira Junho/2023(401)

 


Jorge C. Ferreira
Jorge C. Ferreira (n.1949, Lisboa), aprendeu a ler com o Diário de Notícias antes de ir para a escola. Fez o curso Comercial na velhinha Veiga Beirão e ingressou na vida activa com apenas 15 anos. Estudou à noite. Foi bancário durante 36 anos. Tem frequentado oficinas de poesia e cursos de escrita criativa. Publica, desde 2014, uma crónica semanal no Jornal de Mafra. Como autor participou nas seguintes obras: Antologia Poética Luso-Francófona À Sombra do Silêncio/À L’Ombre du Silence, na Antologia Galaico-Portuguesa Poetas do Reencontro e A Norte do Futuro, homenagem poética a Paul Celan.  Em 2020 Editou o seu primeiro livro: A Volta À Vida Á Volta do Mundo; em 2021 Desaguo numa imensa sombra. Dois livros editados pela Poética Edições.

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22 Thoughts to “Crónica de Jorge C Ferreira | Isla Negra”

  1. Consigo compreender perfeitamente esse silêncio de diálogo, essas conversas íntimas.
    Toda a restante reflexão também. Não tenho é andado muito disposta a alongar-me.
    Boa semana, querido Jorge.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado querida Sofia. Sei que compreendes bem esse mundo. A fala do silêncio. As conversas por nós inventadas. A minha imensa gratidão por estares aqui. Abraço grande.

  2. Regina Conde

    Emocionante e bela crónica. As conversas com quem já partiu existem de um jeito tão forte, vivo até. Apenas o corpo não está junto de nós. O amor e alento que a tua avó te transmite é luz. Tenho a minha estrela, de olhos azuis, também temos conversas. escuta-me como se me desse colo com o mesmo vigor de antes. Assim vivem dentro de nós. Que bom teres “estado” com Pablo Neruda. Nem sempre a coragem ou o tempo são favoráveis e adiamos. Assim acontece. Obrigada por esta conversa. Abraço imenso meu Amigo.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Regina. Lindo o que escreveste. Linda a tua Estrela de olhos azuis. Que bem deve saber esse colo. A minha gratidão por estares aqui de corpo inteiro. Abraço grande.

  3. Margarida Pires

    Jorge C. Ferreira – Crónica e 26junho 2023
    Mais um belo texto que nos transporta à terra que Pablo Neruda tanto amava e onde viria a falecer. Quanta emoção neste texto-poema!!
    Gostei muito!!!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Margarida. Sim, uma viagem ao meu querido Poeta. Descansar junto dele e voltar. Grato pelo seu comentário. Abraço

  4. Maria Luiza Caetano Caetano

    Ter alguém que me fale destas coisas, é realmente uma dádiva, que muito agradeço. Tudo conhece e tão bem o transmite, querido escritor é realmente maravilhoso poder concretizar os nossos ideais. Na verdade, “querer é poder.”
    Não foi possível a conversa que tanto desejou ter com, Pablo Neruda, mas já foi um privilégio poder sentar-se nesse lugar onde ele para sempre repousa, com esse mar azul vivo e atento.
    Quase sempre é com os nossos que aprendemos, coisas que jamais esquecemos. Que bonita essa conversa com seu pai. Lindo o seu sentimento, tão belo e puro. Tanto que sua avó deixou consigo. Conseguiu emocionar-me. Tão belo o que escreve, louvo-o não só pela imaginação, mas pela beleza da verdade que viveu e sentiu, tanta ternura que bela oferta. Como se devia sentir feliz a Isabelinha, quando à noite se uniam e reconhecia que estavam que estacavam mais ricos, No conhecimento, no amor e na poesia. É um encanto ter o prazer de conversar consigo, lamento que o Jorge não realizasse o ensejo de conversar, com Pablo Neruda, como era seu desejo..
    Gratidão minha. Abraço meu.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Maria Luiza. Que privilégio ler este seu comentário. A gratidão é toda minha. O meu querido Poeta e a minha adorava Avó. Ambos sempre a aceitar o novo. Não sei como lhe agradecer, minha Amiga. Fica um beijo.

  5. Eulália Coutinho Pereira

    Bela crónica. Silêncios que falam. Perguntas com respostas silênciosas .
    Pablo Neruda, poeta eterno.
    Os qy partiram e permanecem no nosso pensamento, nas nossas memórias.
    Obrigada Poeta, pela beleza da sua escrita e humildade da partilha.
    Grande Abraço.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Eulália. Que bom o seu comentário. Sucinto e completo. Poetas e gente adorada como eles. A minha imensa gratidão. Abraço grande.

  6. Cecilia Vicente

    Saber ler como se nos situassemos no mesmo diálogo, um prazer inovidável para poucos. Como poucos, muito poucos mesmo conseguem ouvir lendo cada palavra, folhear cada página ouvindo outras vozes que contaram e aconselharam é privilégio de tão poucos. É nestes momentos de crónica que viajo, é nestes momentos que a história de ouvir e ler me é transmitida com tal sensibilidade e amor que me sinto parte integrante da mesma sensibilidade. Obrigada, sempre, meu, muito amigo Jorge ,é meu privilégio estar aqui. Abraço!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Cecília. Imenso é o neu privilégio de ter aqui os teus belos comentários. Sim a arte da leitura é mágico. Há um escritor em cada leitor. Ouvir as palavras de um Poema e levitar Muito grato. Abraço enorme

  7. Isabel Soares

    Uma crónica poema. As palavras a arrepiar a pele de quem as lês num desvario inscrito num corpo de carne viva. Um ser que se desnuda ( como habitual) numa mensagem crua de memórias que o habitam e o alimentam no presente. O diálogo fumegante da(s) história (s)individual do poeta num discorrer poético e cognitivamente vibrante.
    As pessoas ( sempre as pessoas) marco, os lugares sagrados e a existência em si desses objectos, inseparáveis, afectivos. A riqueza de um universo pessoal a permitir e legitimar um texto.
    Uma crónica de amor. De amores. Um escrito de cicatrizes sangue torneando uma identidade.
    Memórias vivas e presentes num ” discurso ” inflamado ora de ternura ora de paixão ora de uma admiração inicial.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Isabel. Que belo comentário. São as pessoas a nossa razão de viver. Com eles podemos falar sempre. Ouvir e adivinhar as suas respostas e interpelações. A vida é um repositório de acontecimentos. Grato pela sua presença. Abraço grande

  8. Filomena Geraldes

    de Neruda sei os seus poemas.
    nem todos. apenas os que se me fundem na pele.
    os que ficaram tecidos e entranhados como tatuagens.
    os íntimos. os ceifados ao sangue e ao amor.
    se falo com os meus? os ausentes?
    como tu, meu peregrino das rotas, dos caminhos insondáveis, dos pequenos mapas desenhados nas mãos?
    chamo por eles. trocamos longos e calorosos diálogos.
    e é tal a magia do instante que me
    fica na boca o travo doce dos frutos vermelhos
    o eco de uma quase loucura
    a nudez das almas
    a mansa febre .
    como tu, meu trovador, demoro-me nas memórias,desafio os calendários
    devolvo os fios de ternura, contemplo as fórmulas que cativam o contorno das letras e fico extasiada. de vigília.
    rindo. chorando. bordando todos os sinais do dilúvio do amor.
    não quereria partilhar nunca este segredo.
    só tu para me libertares de todas pregas.
    dos labirintos.
    das crateras.

    fecho os olhos.
    vou dormir com a janela aberta.
    quando escurecer pedirei à noite que me ensine a ancorar o sonho…

    sempre grata por te saber vogando nas memoráveis pulsões.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Mena. Que belíssimo poema. A tua presença neste espaço é uma dádiva. Porque os poetas se encontram nk cruzamento das belas palavras. É difícil responder a coisas tão belas. A minha gratidão. Abraço enorme.

  9. Fernanda Luís

    Boa noite Jorge
    Que emoção, que arrepio quando fala do Chile.
    Amo muito esse País e o seu povo, sem esquecer os índios nativos (povo Mapuche), a música, as flautas…Sei lá, sei lá…
    Dom Pablo, um dos maiores poetas universal do Amor, lembro aqui também a poetisa Gabriela Mistral que viveu e escreveu em Portugal.
    “Conversas caladas” que linda forma de dizer. Sou “militante” de conversas caladas, ahah!
    Em síntese, gostei muito da Crónica.
    Abraço, até breve.

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Fernanda. Um comentário escrito com o coração. Uma maravilha a que acrescentar algo, seria estragar. A minha enorme gratidão. Abraço grande

  10. Claudina Silva

    Amei a tua crónica! Obrigada Poeta!

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado claudina. É sempre bom ter aqui um comentário teu. Muito grato. Abraço grande

  11. Clara Figueiredo

    ♥️🥀♥️

    Que bom e bonito ver o outro comovido e partilhar assim sentimentos…
    Obrigada 🌷🌷

    1. Jorge C Ferreira

      Obrigado Clara. Que bom estar aqui neste nosso espaço. Muito grato. Abraço grande

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